
As doutrinas do Calvinismo têm uma maneira tanto de ferir quanto de curar o coração humano. Eles são espada e bálsamo, pedra de tropeço e rede de segurança, nuvem de trovão e arco-íris.
O poeta Samuel Taylor Coleridge(1772–1834) uma vez descreveu Calvinismo como um cordeiro em pele de lobo: “cruel nas frases”, mas “cheio de consolo para o sofrimento do indivíduo”. As palavras eleição incondicional, por exemplo, podem soar rude na superfície; elas podem parecer rosnar e mostrar os dentes. No entanto, como incontáveis cristãos descobriram, debaixo desse aspecto lobal exterior do calvinismo está a suavidade de um cordeiro.
Alguns, entretanto, tem visto nas frases do Calvinismo não um cordeiro em pele de lobo, mas apenas um lobo(Ou apenas um cordeiro). Quantos tem sentido a ofensa do calvinismo (Você está me chamando de totalmente depravado?) e esqueceram do conforto? E quantos, alternativamente, tem alcançado o conforto do calvinismo (“Uma vez salvo, sempre salvo”) sem receber sua ofensa?
Por algum tempo, Cristãos tem capturado a doutrina da salvação em um acrônimo TULIP (Resumindo os Cânones de Dort de 1619).
- Depravação Total
- Eleição Incondicional
- Expiação limitada
- Graça Irresistível
- Perseverança dos Santos
Essas frases celebram a Salvífica e soberana Graça de Deus — A graça que ofende e a Graça que conforta. Mas, para compreender tanto a ofensa quanto o conforto, é uma boa ideia considerar o que essas frases não significam, o que TULIP nunca nos ensinou.
Depravação Absoluta
Infelizmente, algumas pessoas expõem o calvinismo começando e terminando com a frase “Depravação Total”. O que algumas pessoas ouvem nessas duas palavras? Como pecadores, estamos tão caídos como nós poderíamos estar. Nada que nós fazemos pode ser chamado de bom ou gentil ou nobre em qualquer sentido. Os impulsos mais perversos pisam e se esforçam como cavalos por dentro, contidos pelas rédeas mais finas. Nós somos absolutamente depravados.
“Depravação Total nunca teve a intenção de Ensinar a Depravação Absoluta”
Não é de admirar que alguns ouçam a depravação total, imaginem sua doce, mas incrédula tia Susie e joguem a TULIP de lado. Mas a depravação total nunca teve a intenção de ensinar a depravação absoluta. Em vez de afirmar que nós somos tão falhos como poderíamos ser, a doutrina simplesmente afirma que cada parte de nós é falha. Como os cânones de Dort colocaram, quando nossos primeiros pais caíram,
Eles trouxeram sobre si cegueira, terrível escuridão, futilidade e distorção do julgamento em suas mentes; perversidade, provocação e escuridão em seus corações e vontade; e finalmente, impureza em todas as suas emoções. (III/IV.1, ênfase dada)
Paulo oferece um testemunho semelhante em Efésios 2:3:
Entre eles também nós todos andamos no passado, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como também os demais.
Por natureza, nós cumprimos (por nossa vontade) os desejos caídos de nosso corpo e mente. em outras palavras, quando o pecado entrou na porta da natureza humana, ele fez lar em todos os quartos. Como resultado, nós nascemos “mortos” para as coisas de Deus (Efésios 2:1), espiritualmente desamparados e incapacitados de voltar a ele por conta própria.
As escrituras usam uma linguagem dura para descrever a pecaminosidade humana: “todo desígnio do coração delas era continuamente mau.” (Gênesis 6:5); “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto.” (Jeremias 17:9). Ainda assim, a imagem de Deus permanece em humanos caídos (Gênesis 9:6; Tiago 3:9). Incrédulos são capazes de mostrar “bondade incomum” (Atos 28:2). Poetas pagãos podem escrever a Verdade (Atos 17:28).
Mesmo que esses atos fiquem aquém de agradar a Deus— já que “tudo o que não provém de fé é pecado” (Romanos 14:23) — Eles, no entanto, refletem o poder da graça comum de Deus para impedir que os totalmente depravados se tornem Absolutamente Depravados.
Salvação Incondicional
O calvinismo oferece profundamente uma segurança inabalável para pessoas frágeis — mas não o tipo de segurança que nós as vezes imaginamos. Muitos de nós, por exemplo, assumimos que para nossa salvação descansar seguramente, ela precisa ser incondicional. Se nós devemos fazer A, B ou C para finalmente sermos salvos, então pode parecer que nossa pequena casa de fé repousa em uma terra de violentos terremotos.
Nós podemos ouvir a palavra Incondicional na TULIP, e, portanto, respirar fundo. A salvação não requer nada de mim, podemos pensar. O “U” de TULIP, entretanto, não significa uma Salvação Incondicional, mas uma Eleição incondicional — a Doutrina que Paulo anuncia em Romanos 9:11–12 (Entre outros lugares). Referindo-se a Esaú e Jacó, ele escreve:
E os gêmeos ainda não eram nascidos, nem tinham feito o bem ou o mal — para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama — , quando foi dito a Rebeca: “O mais velho será servo do mais moço.”
Note a distinta falta de condições de Deus ao escolher chamar Jacó em vez de Esaú. Jacó não era mais merecedor e Esaú menos merecedor, pois a Eleição de Deus ocorreu antes dos irmãos tivessem feito qualquer coisa “boa ou má”. Nas palavras de Dort, Deus viu ambos os homens deitados “na mesma miséria” (I.7). Sua escolha, assim, foi incondicional.
Mas, fora da eleição, a Salvação realmente inclui condições. A justificação requer fé (Gálatas 2:16). A santificação requer esforço (Filipenses 2:12–13). O perdão requer perdão (Mateus 6:14–15). E o céu requer santidade (Hebreus 12:14).
E ainda assim, debaixo da gloriosa promessa da nova aliança, nós ainda podemos respirar fundo; nossa casa de fé pode descansar segura. Porque, quando Deus elege alguém, ele não apenas o chama mas o mantém por todo o caminho até o fim (Romanos 8:30). Como Dort coloca, Deus “escolheu-nos desde a eternidade, tanto para a graça como para a glória, tanto para a salvação como para o caminho da salvação” (I, 8).
Em outras palavras, a Eleição incondicional não nos isenta de todas as futuras condições; ela garante que nós vamos cumprir todas as condições futuras pelo poder do Espírito. Se Deus nos elegeu, confiaremos e continuaremos confiando, nos esforçaremos e continuaremos nos esforçando, perdoaremos e continuaremos perdoando, mesmo através de muitos pecados, lapsos e vales de dúvidas.
Hiper Calvinismo
Expiação Limitada pode ser a frase da TULIP mais propensa a mal-entendidos. E, infelizmente, alguns calvinistas entraram no mal-entendido enfatizando a palavra limitada. Em seu zelo por defender o amor especial de Cristo por seu povo e o poder efetivo de sua redenção, alguns têm falado ou agido de maneiras que sugerem uma pequenez para o que Jesus comprou e uma relutância em divulgá-los de forma aberta.
Ensinada corretamente, a expiação limitada diz que, embora a morte de Jesus “sejam de valor e mérito infinitos, mais do que suficiente para expiar os pecados do mundo inteiro” (como diz Dort, II.3), Jesus tinha pessoas particulares em mente quando subiu ao monte do Calvário. Ele morreu por suas ovelhas (João 10:15), seus amigos (João 15:13), sua noiva e igreja (Efésios 5:25) — ou para emparelhar o “L” com o “U”, ele morreu por aqueles a quem o Pai havia eleito incondicionalmente. Desse modo, a expiação limitada enfatiza, não a natureza limitada da morte de Jesus, mas sua finalidade. (Por isso que muitos calvinistas preferem os termos redenção particular ou expiação definitiva.)
Historicamente, alguns calvinistas passaram de uma afirmação verdadeira (Jesus morreu por seus eleitos) para uma conclusão falsa: Os cristãos devem oferecer Cristo aos outros somente quando esses outros mostram sinais de eleição. Às vezes chamada de hiper calvinismo, essa posição é uma bela ilustração da síndrome da carroça antes dos cavalos, já que os eleitos aparecem precisamente pela forma como respondem à oferta de Cristo. Ao longo de Atos, por exemplo, nós não encontramos nenhum apóstolo hesitando ou na ponta dos pés antes de pregar Cristo plena e livremente. Os apóstolos, ao invés disso, publicam o evangelho sem distinção; somente depois eles decidem quem, entre as multidões, foi “designado para a vida eterna” — porque esses eleitos “creram” (Atos 13:48).
Longe de alguém, então, tomar a expiação limitada como uma razão para limitar o valor precioso do sangue de Cristo ou a oferta mundial desse sangue a todo e qualquer pecador, por mais não eleito que ele ou ela pareçam no momento.
Determinismo Rígido
Muitos que ouvem falar do calvinismo, com a depravação total do homem e a soberania de Deus, lutam para não ver o mundo que ele apresenta como um espetáculo de marionetes. Essa foi certamente minha maior luta. O calvinismo pode parecer sugerir, “Sim, pessoas podem parecer desejar, amar e decidir no palco da vida humana; eles podem parecer pessoalmente responsáveis por suas ações. Mas acima espreita o Grande Marionetista, levantando os braços e pernas por cordas invisíveis.” A frase Graça Irresistível parece colaborar com essa imagem. Nós, meros fantoches, vamos aonde as cordas de Deus nos puxam.
Os ministros de Dort, formuladores dos 5 pontos, eram sensíveis à essa luta. “Essa graça divina da regeneração,” eles escreveram, “não age sobre os homens como se fossem máquinas ou robôs, e não destrói a vontade e as suas propriedades, ou a coage violentamente sua vontade relutante.” (III/IV.16) Então, o que significa Graça Irresistível?
A doutrina de fato ensina que Deus é o primeiro e decisivo ator no milagre da salvação — e que deve ser assim, dada a incapacidade da vontade caída de buscar ou se submeter a Deus (Romanos 3:11; 8:7) Como no princípio, Deus e não o homem é quem diz, “Haja.” E, ainda assim, aqueles que foram moldados por Deus não são maquinas, robôs ou fantoches. Pois, na regeneração, “Deus infunde novas qualidades na vontade, tonando viva a vontade dos mortos. O maligno, tornado bom. o relutante, feito disposto. O teimoso, transformado em complacente.” (III/IV.11) Quando Deus salva uma pessoa, ele não a arrasta contra a sua vontade; ao contrário, Ele “penetra no mais íntimo do ser” para que ela se torne maravilhosa e alegremente disposta a ser salva. A graça irresistível se refere a cura da vontade humana.
“A decisão de Deus de nos salvar proporciona, ao invés de impedir, que nossa própria decisão de sermos salvos.”
O “I” de TULIP, então, ecoa a profética promessa que Deus escreverá sua lei no coração (Jeremias 31:33) e então, “Tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei um coração de carne.” (Ezequiel 36:26). Os Marionetistas podem tirar as cordas; Deus ressuscitou os corações. E isso significa que sua decisão de nos salvar garante, em vez de anular, nossa própria decisão de sermos salvos. Como Sinclair Ferguson escreve: “A escolha é feita para nós, assim como é feita por nós”.
Uma vez salvo, sempre salvo
Os teólogos reunidos em Dort estavam profundamente conscientes que alguns “Calvinistas” viveriam de tal forma que o calvinismo pareceria “uma morfina para a carne e para o diabo” (“Rejeição de Erros”, v.6) Talvez, em nenhum outro ponto isso aconteça mais do que o quinto ponto da TULIP, perseverança dos santos, popularmente parafraseada como “Uma vez salvo, para sempre salvo”.
Entendido corretamente, “Uma vez salvo, para sempre salvo” captura com precisão a doutrina calvinista. Nosso Deus termina toda boa obra que ele verdadeiramente começou (Filipenses 1:6); Ele glorifica todos aqueles que ele justificou (Romanos 8:30). Mas na prática popular, “uma vez salvo, sempre salvo” frequentemente significa algo diferente: uma vez que você tenha tomado a decisão por Jesus, você vai ser salvo não importa o que aconteça.
Tal doutrina funcionaria de fato como uma “morfina da carne” — e funcionou. Quantos caminharam sem medo no caminho largo para a destruição por causa do tempo que passaram na estrada estreita? Quantos confortavelmente dobraram os joelhos diante de suas concupiscências porque uma vez dobraram os joelhos diante de Cristo? Quantos encontraram sua segurança numa decisão passada por Jesus e não no amor presente por Jesus?
Entretanto, a perseverança dos santos leva a sério essa palavra perseverança. Sim, Deus salva para sempre aqueles a quem ele salvou uma vez, mas ele o faz isso nos capacitando a “permanecer na fé, estáveis e constantes” (Colossenses 1:23). Sim, Jesus mantém suas ovelhas seguras em suas mãos, mas ele o faz evitando que se tornem bodes ou lobos (João 10:28).
O povo perseverante de Deus, então, não é marcado por uma abordagem despretensiosa e à deriva da vida cristã. Eles levam a sério as advertências das Escrituras, conscientes de que aqueles que “vivem segundo a carne… morrerão” (Romanos 8:13). Eles se esforçam para desfrutar de Deus através de seus meios designados, sabendo que quem não permanece em Jesus murcha e queima (João 15:6). Eles trabalham sua salvação com temor e tremor, confiantes de que sua obra é evidência do Deus que trabalha dentro deles (Filipenses 2:12–13).
Espada e Bálsamo da Graça
Em seu livro Graça Definida e defendida, Kevin DeYoung escreve:
No fundo, os Cânones de Dort tratam da natureza da graça — graça sobrenatural, unilateral, soberana, eficaz, redentora e ressuscitadora, em todos os seus ângulos, com toda a sua ofensa ao orgulho humano e todo o seu conforto para o alma cansada.
A graça de Deus não é simples ou unidimensional. Tem ângulos. Surpreende e encanta, ofende e conforta, corta e cura. Pode parecer áspera como pele de lobo no início, mas depois sentimos a lã.
Poucas doutrinas são mais humildes do que aquelas capturadas na TULIP. Nascido depravado em mente, coração e vontade; escolhido por nada em mim; resgatado e guardado apesar das ofensas diárias ao meu Deus — isso abaterá uma pessoa. Mas eles também a erguerão para contemplar e ser curado por um Deus digno da aclamação: “A salvação pertence ao Senhor” (Salmo 3:8).
Créditos
Tradução: Tayllon Carvalho
Publicado em Inglês no site Desiring God. Traduzido e Publicado com autorização da mesma
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